Algemado, a caminho de uma audiência no interior do Piauí, Francisco das Chagas Diolindo, de 20 anos, está dopado por medicamentos. Fala pouco. E o pouco que diz é sobre as músicas que compõe no cárcere. Há quase um ano, Diolindo foi absolvido de um crime em razão de um transtorno mental e começou a cumprir medida de segurança no Hospital Penitenciário Valter Alencar. Passa os dias e noites numa cela, trancada o tempo todo por agentes penitenciários.
– Você é como rosa, suave como o vento do macio azul do mar – canta, numa de suas composições.
No mesmo hospital, um grupo de presos provisórios – sem exame de insanidade mental, sem a decretação da medida de segurança e sem processo na Justiça – está isolado nos fundos da unidade, alguns deles há 22 anos. Para quem os visita (quase ninguém ao longo de décadas), eles cantam “Minha amiga”, da cantora Bianca, sucesso na década de 80. A música tocava insistentemente no rádio quando o grupo ainda tinha liberdade. “As amigas que eu tenho não se comparam a você”, diz a canção.
As letras são uma ironia diante da realidade flagrada pela reportagem do GLOBO no hospital penitenciário, um dos piores manicômios judiciários do país. A unidade está ao lado da Colônia Agrícola Major César Oliveira, um presídio de regime semiaberto que abriga 33 pessoas com transtornos mentais, misturados aos presos comuns. No hospital psiquiátrico, são mais 74 internos.
Quase todas as “enfermarias” misturam pacientes com transtornos mentais e pessoas com outros diagnósticos, como hanseníase e doenças decorrentes da Aids. As portas ficam sempre trancadas. No dia em que O GLOBO esteve na unidade, que fica a 30 quilômetros de Teresina, não havia um único médico ou enfermeiro.
Funcionários fantasmas
Das 74 pessoas no hospital, apenas 13 cumprem medidas de segurança. A maioria, 41, é de presos provisórios. Há casos de internação compulsória sem determinação judicial; de aplicação de medida de segurança sem um laudo psiquiátrico; e de medidas de segurança cumpridas sem a realização de exames de cessação de periculosidade, que asseguraria a volta ao convívio social.
Uma auditoria realizada pela Controladoria Geral do Estado (CGE) revelou pagamentos indevidos de R$ 1,8 milhão a funcionários da Secretaria de Justiça, boa parte fantasmas, segundo a investigação. A maioria dos supostos fantasmas – 36 pessoas – estava lotada no hospital penitenciário, no núcleo de serviços de saúde mental e na colônia agrícola. O documento se refere aos anos de 2010 e 2011. Outra auditoria da CGE mostrou a existência de equipamentos hospitalares encaixotados há mais de dez anos no Valter Alencar.
– As pessoas estão sendo bem atendidas no hospital. E essas acusações são anteriores à minha gestão – diz o secretário de Justiça do Piauí, Henrique Rebelo, deputado estadual pelo PT.
O hospital não é credenciado ao SUS. Diante dessa realidade, o Ministério Público pediu que a unidade não receba mais loucos infratores, o que foi determinado pela Justiça em setembro. Eles passaram a ser levados para outros presídios. A reportagem constatou que o hospital ainda recebe presos comuns, que ficam em celas minúsculas para “triagem”. Um dos quatro detentos nessa condição estava lá há aproximadamente um mês por ter levado uma pancada.
Processo desaparecido
Toinha é um dos presos provisórios do hospital penitenciário. O GLOBO descobriu que ele é um detento sem processo na Justiça, sem informações no prontuário, sem família. Os registros mostram que Antônio Vieira Lima chegou à unidade em 6 de julho de 2000, três dias depois da abertura de um inquérito policial. Os arquivos da Secretaria de Saúde apontam que Toinha foi internado compulsoriamente, a pedido de um juiz, em 1992. Ele já passou por um sanatório desativado em Teresina, ficou um tempo no presídio e agora passa os dias nos fundos do Valter Alencar, juntamente com outras 17 pessoas.
A reportagem tentou localizar algum processo de Toinha na 1ª Vara do Tribunal do Júri. Ele é suspeito de ter assassinado o pai, mas não há uma sentença para o caso, que ainda estaria na fase de inquérito policial. Depois de vasculhar os armários da vara, o escrivão disse que o processo “desapareceu”. Toinha tem esquizofrenia, a mesma doença da maioria de seus colegas de ala.
– Tenho vontade de sair. Não saio porque minha família não vem me buscar – diz Toinha.
Presos provisórios estão espalhados pelo hospital. Gregório de Barros, um homem franzino e com limitações físicas, chegou ao presídio ao lado em 1999. Desde 2007, divide uma “enfermaria” que mistura pacientes com transtornos mentais e clínicos. Agentes dizem que ele não tem problemas psiquiátricos. A Justiça nunca se manifestou sobre o quadro clínico de Gregório.