Há cerca de oito anos, a cineasta Laís Bodanzky foi convidada por Cauã Reymond e Mário Canivello para dirigir uma produção sobre dom Pedro 1º. O ator e o produtor já tinham visto filmes dela, como “Bicho de Sete Cabeças” e “As Melhores Coisas do Mundo”, e acreditavam que poderia abordar a vida do primeiro imperador brasileiro de um modo original, longe de estereótipos.
Bodanzky aceitou o convite, mas não pôde iniciar o projeto naquele momento. Há cinco anos, quando lançou “Como Nossos Pais”, a diretora, enfim, começou a se dedicar ao roteiro e logo percebeu que seria um desafio maior do que imaginava.
“Observando a cinematografia em geral, não só no Brasil, não há mais sentido em fazer um filme em um formato clássico, do nascimento à morte do personagem, dando conta de uma vida inteira. Eu precisava de um recorte”, ela lembra.
Havia um outro problema. Sendo uma coprodução brasileira e portuguesa, o filme precisaria dialogar com esses dois públicos. Mas como fazer isso se o Pedro, que se notabilizou por aqui é o da independência em 1822 e o da abdicação do trono em 1831, e o Pedro mais conhecido em terras lusas é o que combateu e venceu o irmão Miguel nas Guerras Liberais, que se estenderam de 1832 a 1834?
Em meio a essas dúvidas, a diretora conversou com um amigo. “Qual é a crise, Laís?”, ele perguntou. “Pedro era de um jeito no Brasil, e de outro em Portugal. Ele se transformou justamente quando chegou lá, parecia outra pessoa”, disse ela. O amigo arrematou -“então você já sabe qual é a história”.
Era a deixa (ou o clique, como ela diz) para que a cineasta começasse a escrever um roteiro sobre a viagem do monarca numa fragata de volta ao seu país natal, em abril de 1831. Além de a ajudar a enfrentar os impasses lembrados, essa saída permitia que Bodanzky tratasse Pedro mais como um homem de múltiplas contradições do que como uma figura histórica.
Naquele momento, o nome do filme não estava definido, mas era certo que usariam Pedro no enunciado, e não dom Pedro 1º. “Queria tornar o personagem mais palpável, tirar do pedestal. A história não é feita por semideuses, é feita por gente com sonhos, angústias, medos”, afirma a diretora sobre “A Viagem de Pedro”, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas.
“Nunca tive a pretensão de narrar fatos históricos, e a travessia do Atlântico em 1831 é um pouco um limbo, são escassas as informações sobre o que aconteceu. Eu me senti aliviada para poder usar licenças poéticas, para poder falar de Pedro e do Brasil, e também para me pôr ali dentro.”
O filme mostra o imperador num momento de impopularidade no Brasil. Além disso, restavam a ele poucas reservas financeiras, o que tornaria mais complicado o embate do seu grupo contra as tropas de dom Miguel, seu irmão.
Havia ainda os tormentos de ordem mais pessoal. Ao longo da viagem, Pedro sente dificuldade para fazer sexo com Amélia, sua segunda mulher, uma limitação que o deixa em dúvida sobre sua virilidade. Uma disfunção desse tipo era especialmente embaraçosa para um homem como ele, que colecionava amantes. “Desconstruímos a virilidade dele, existem relatos de que tinha sífilis. Pedro não conseguia engravidar Amélia”, diz Cauã Reymond.
No mais, o monarca tinha lembranças recorrentes de Leopoldina, sua primeira mulher, que havia morrido cinco anos antes. Crises não faltavam, portanto. Bodanzky se sentiu à vontade para, a partir daí, imaginar a travessia, mas imaginar, segundo ela, com base em fatos concretos. “Não inventei nada, ele estava mesmo doente e sentia muita culpa.”
O envolvimento da diretora com o trabalho se uniu à inquietude de Reymond. “Eu buscava personagens que não estavam chegando para mim [quando o projeto foi idealizado], personagens interessantes que me levassem para um outro lugar”, diz o ator de 42 anos.
“Não queríamos construir um herói”, conta. “Ele se dizia liberal e, no entanto, agia como um ditador quando se sentia inseguro. Tinha uma postura militar, mas muitas vezes era tomado pela fragilidade”.
Segundo o ator, “A Viagem de Pedro” fala muito aos dias de hoje ao abordar temas como “masculinidade tóxica e racismo estrutural”. Em meio à travessia, Pedro trata Amélia com rispidez, como também fazia com Leopoldina. O comportamento agressivo como marido contrasta com a gentileza com a qual lida com os filhos -duas das crianças aparecem no filme, Pedro, futuro imperador do Brasil, e Maria, mais tarde rainha de Portugal.
O racismo de que fala Reymond fica evidente no modo como Pedro e outros representantes da corte presentes na fragata tratam os negros, fossem eles escravizados ou libertos. São os cozinheiros e outros serviçais.
Devido ao seu comportamento informal, o monarca parece próximo dos trabalhadores negros. Logo se vê, entretanto, que é uma intimidade ambígua, revestida de discriminação em diálogos e gestos.
Segundo Bodanzky, algumas passagens com personagens negros indicadas no roteiro foram excluídas ou alteradas ao longo do processo. Estava prevista, por exemplo, uma cena em que Pedro estupra uma mulher negra, momento que chegou a ser filmado -“fizemos com respeito, com sutileza”, diz- , mas caiu na edição final.
“Como branca, achei que era importante lembrar que isso aconteceu no Brasil. Mostrei a cena para uma amiga, uma cineasta preta, que falou que eu deveria tirar. Depois, outras pessoas pretas disseram ‘a gente não aguenta mais, é preciso contar aquilo que ainda não foi contado, mudar o imaginário'”, lembra Bodanzky.
Mudar o imaginário nessa e em outras questões mal resolvidas do passado do Brasil -ou ao menos apresentar ao público outros caminhos para entender o país. Talvez seja esse o principal objetivo de “A Viagem de Pedro”. Não é pouco.
A VIAGEM DE PEDRO
Quando Estreia nesta quinta (1º) nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Cauã Reymond, Vitória Guerra e Rita Wainer
Produção Brasil, 2021
Direção Laís Bodanzky
Fonte: NAIEF HADDAD (FOLHAPRESS) SÃO PAULO, SP