Pular para o conteúdo

A maconha de Miguel Leão: erva demais para informação de menos

 

Por: professor Orlando Berti*

O Piauí e parte do Brasil foram surpreendidos nesta segunda-feira (27 de julho) com uma grande apreensão de maconha. Ou, como foi plenamente noticiado, a maior apreensão de maconha este ano no Nordeste. O fato ocorreu na pobre Miguel Leão, a 94 quilômetros de Teresina, até então conhecida apenas por ser a cidade com o menor número de habitantes do estado.

content MACONHA MIGUEL LEAO 01
Maconha apreendida na pobre Miguel Alves: exibição como troféu. Mais de uma tonelada? Foto: PM-PI

Mas se falta gente para morar em Miguel Leão sobrava pé de maconha para ser plantado em uma roça na zona rural do município. Aproveitadores, vindos de outras partes do País e trazendo a experiência de cultivar a droga (ainda muito apreciada na sociedade piauiense), fizeram do lugar, a menos de cem quilômetros da capital, um oásis com direito a roça de seis etapas, irrigação e um sistema de escalonamento de trabalho a dar inveja à mais organizada cooperativa agrícola.

O que chama atenção no caso não é só a apreensão em si. As polícias Civil e Militar do Piauí estão de parabéns, pois deram um golpe profundo na estrutura do tráfico. Mesmo a descoberta tendo sido por acaso, conseguiram salvar muitas vidas que seriam acabadas pela droga.

O fato mais interessante é que era maconha demais para informações de menos.

content MACONHA MIGUEL LEAO 02
Maconha secada na roça moderna em Miguel Leão. Dados divulgados: de 500 quilos a 10.000 quilos. Foto: PM-PI

De 500 quilos a dez toneladas (20 vezes mais) noticiou-se sobre o fato. Apareceu saco de maconha demais. A Polícia Militar do Piauí diz em seu site que foram 84 sacos apreendidos, cada um com, aproximadamente, 20 quilos da droga. O que daria, em uma conta básica, mais ou menos uma tonelada e meia de erva.

O que isso quer dizer? Será que o cheiro da droga fez entorpecer os números e infla-los ao bel prazer do noticiamento dos fatos?

Mas o pior foi sobre o noticiamento do número de pés de maconha. Os dados divulgados é que as roças têm seis hectares. E aí os números inflam, chegando a dizer que havia mais de 40 mil pés. Para quem entende o básico de agricultura sabe que para ter essa quantidade de plantas deveria haver muito mais terra. Principalmente porque os pés de maconha estavam plantados a mais de um metro de distância, um dos outros e não em terreno contínuo. Foi divulgado que 20 homens ajudaram na destruição da plantação. Se fosse assim, cada um teria de destruir 2 mil pés. Haja facão para pôr tanta maconha abaixo.

MAIS UMA APÓS O CASO DA FILHA DO APRESENTADOR DE TV. O FETICHE DA VELOCIDADE

Na semana iniciada com a ressaca da série de notícias erradas sobre o suposto sequestro da filha grávida de um apresentador da TV Meio Norte: os dados confusos sobre a apreensão de maconha em Miguel Leão (inclusive veiculados em vários telejornais de abrangência nacional) precisam trazer lições para a classe jornalística. Classe essa cujo qual faço parte como pessoa que tenta formar novos jornalistas e como jornalista de campo em experimento acadêmico neste portal.

Assim como o caso do sequestro da grávida o fetiche da velocidade de quem traz a notícia em primeiro lugar, ou quem traz mais dados, mesmo via fontes oficiosas primeiro que os concorrentes, prejudica o bom jornalismo.

content 535
Livro que explica porque nós, jornalistas, erramos tanto ao querer noticiar fatos no tal “primeira mão”

Desde o final do século passado quando a Internet começou a ganhar fôlego como terreno fértil para a divulgação de notícias que o fetiche da velocidade é debatido em eventos acadêmicos, livros e, principalmente, em rodas jornalísticas. A primeira obra é “Jornalismo em Tempo Real – O Fetiche da Velocidade”, de Sílvia Moretzsohn (recomendo).

E comprova-se que essa vontade acima de tudo de divulgar os fatos primeiro é algo praticamente único entre jornalistas. Que o consumidor normal de informação prefere esperar a ter uma notícia falsa ou errada. E que é o ego jornalístico de passar o “concorrente” que alimenta o fetiche.

Então vem a pergunta: por que se erra tanto?

Eu não teria respostas certeiras, mas tenho hipóteses. Além do fetiche da velocidade (como já dito) é a cultura do checar a informação. E o checar não só das fontes oficiais (essas também erram). Mas o checar e estar diante dos fatos, abandonando o “jornalismo sentado” (termo em que os jornalistas passam o dia nas redações) e, principalmente o que chamo de “Jornalismo de Whatsapp”, novo vício contemporâneo jornalístico baseado apenas em informações que circundam por esse aplicativo de troca de mensagens, geralmente abastecido por pessoas que entendem tanto de produção jornalística quanto eu e você entendemos sobre as atividades vulcânicas da Islândia (ou seja: nada!).

A maconha de Miguel Leão é apenas um entre os desafios do nosso jornalismo. Não quero dizer o caminho certo, mas apenas constatar o caminho errado. Pois nem aqui, e em nenhum lugar, aparecer 12 versões sobre o mesmo fato mostra que algo está meio errado em nossa produção de informações.

Ah…e só para constar, ontem à noite, após às 21h, importunei um dos assessores de Comunicação da Secretaria de Segurança Pública. Em sete minutos ele confirmou os dados oficiais: três toneladas e 40 mil pés arrancados. Mais um número que diferencia. O valor exato de maconha apreendida em Miguel Leão ninguém nunca saberá, pois os pés da droga foram destruídos no lugar do cultivo. Enquanto isso: não duvide se nas próximas horas você encontrar a 13ª versão sobre esse fato!

content MACONHA MIGUEL LEAO 03
Pezinhos de maconha. A maior parte era para abastecer a sociedade do Piauí. Foto: PM-PI

* Orlando Berti é jornalista. É professor, pesquisador e extensionista do curso de Comunicação Social – Jornalismo – da Universidade Estadual do Piauí (campus Teresina). É mestre e doutor em Comunicação Social. Faz Pós-doutorado em Comunicação, Região e Cidadania. Desenvolve pesquisa de etnografia das redações, tentando entender o jornalismo piauiense na prática e os fenômenos sociais contemporâneos. É vice-presidente da Rede Brasileira de Mídia Cidadã.

Fonte: O Olho

Comentários
Publicidade

Deixe um comentário

Aviso: os comentários são de responsabilidade dos seus autores e não refletem a opinião do Portal Integração. É proibida a inclusão de comentários que violem a lei, a moral e os princípios éticos, ou que violem os direitos de terceiros. O Portal Integração reserva-se o direito de remover, sem aviso prévio, comentários que não estejam em conformidade com os critérios estabelecidos neste aviso.

Veja também...

Portal Integração