Pular para o conteúdo

Consciência Negra: Nega Mazé uma história de luta pela vida

 mazeMulher Oeirense, que atualmente milita em Picos-PI”

Após uma semana tentando entrar em contato com ela, por ligações, redes sociais, indo ao seu local de trabalho, pedindo para que dessem recados, procurando o endereço de sua casa. Na manhã de quarta-feira, 13 de julho, saí de casa determinada, só voltaria ao entrevistá-la. O sol quente do sertão não me intimidou, passei pelo Centro Administrativo da cidade de Picos- Piauí, onde se localiza a Coordenadoria do Direito das Mulheres, e ela não estava, disseram que ela poderia estar na Prefeitura Municipal, fui até a prefeitura e não a encontrei, deixei um bilhete com o vigia para que ela entrasse em contato comigo, a última esperança era sua residência, fui preguntando se a conheciam e me indicaram o caminho, quando enfim cheguei em frente à sua casa parou uma moto, era o neto dela, perguntou se estava procurando pela Nega Mazé, e disse que havia a deixado no centro administrativo, voltei pelo mesmo caminho já cansada, com fome e finalmente consegui encontrá-la.

Ao entrar na sala da Coordenadoria, vi um homem sentado em uma segunda sala ao telefone, não quis incomodá-lo, fiquei admirando os vários banners, com frases de empoderamento feminino e projetos políticos da secretaria, que me fizeram ter mais certeza de que estava no caminho certo.

Banners na sala da Coordenadoria Foto: Fabiana Santos

Banners na sala da Coordenadoria Foto: Fabiana Santos

Quando me virei para a porta que estava aberta, avistei uma senhora, de cabelos curtos, calça jeans e blusa floral, com uma postura invejável, um semblante alegre, e mesmo com a sua bravura não deixa a sua feminilidade de lado, e quando ela chegou perto, respirei fundo, me apresentei e disse “enfim a encontrei”. Ela, com um sorriso, fala de sua correria em defesa da mulher que sofre violências, “Sandy, meu trabalho não é de birô (escritório), é nas ruas, delegacias, onde for preciso para resolver.”, me convidou para entrar na outra sala e me acomodar.

Logo notei que era uma mulher inquieta, hiperativa, de personalidade forte, guerreira, corajosa que não teme a nenhuma autoridade, defende com unhas e dentes os seus direitos e da sociedade, que deixou sua vida pessoal pela militância. Antes da entrevista ela estava na delegacia e conta um caso de uma mulher que havia lhe pedido ajuda, pois teria sofrido uma tentava de homicídio em janeiro e o Boletim de Ocorrência feito, desapareceu da delegacia, essa era a quinta vez que Mazé se dirigia a delegacia para tomar as providencias e disse ao delegado,“ Se esse B.O não aparecer vou levar o caso oficializado ao Ministério Público,” nesta última tentativa, o Boletim foi encontrado, nada que intimide a Nega Mazé, pois isso já faz parte do seu cotidiano. Enfim ela senta, e iniciamos a entrevista.

História de Luta

maze

Militante Nega Mazé (Foto: Fabiana Santos)

 

 

E inicia com uma frase surpreendente, “Se eu pudesse nascer, seria Nega Mazé de novo”, e explica que não teve tempo suficiente, e que e ainda tem muita coisa para fazer, aos 72 anos ela faz uma análise de que agora só tem 28 anos, pois não vai viver mais de 100 anos.

 

Ela define a sua vida entre conturbada e boa, e que conquistou a sua liberdade, desde a infância no bairro Vereda em Oeiras- Piauí, de onde carrega boas lembranças, “Tenho lembranças maravilhosas, minha casa era de palha, eram dois cômodos na areia, tinha um pé de cajueiro… comia sentada no chão… tive uma infância livre diferente da infância de hoje”. Mazé já nasceu lutando pela vida, ainda no ventre de sua mãe, teve sua existência ameaçada, por decepção conjugal sua mãe quis abortá-la, tomando vários remédios, que lhe causou problemas respiratórios e desnutrição, e nem isso conseguiu impedi-la de vir ao mundo, nasceu pelo pé, narra a militante, “Ah, se eu pudesse nascer de novo, naquele dia as 05:00 horas da manhã, nascendo pelos pés, eu já nasci correndo! Sabia que de cada 100 crianças, escapa 1 que nasce pelos pés?”, relata.

 

De família humilde, mãe dona de casa, e pai com problemas de alcoolismo, a Nega Mazé teve que aprender a trabalhar muito cedo, de atendente de padaria a vendedora de cachaça, fez de tudo um pouco para se manter. Ainda no ginásio sua hiperatividade lhe rendia belas confusões, e apelidos inusitados como “35” por causa do número da lista de chamada, e “Nega Mazé” por ser a única negra da turma, “Nós estávamos assistindo aula de francês e um e menino levantou e disse… ‘Agora que percebi que a única preta da sala é Nega Mazé’… no começo fiquei enfurecida, mas depois descobri a importância da raça negra no desenvolvimento do Brasil, e eu assumi, é Nega Mazé mesmo”.

 

Sua inquietude nunca deixou que aceitasse o que queriam lhe impor, na adolescência juntou-se a três amigos e organizou a primeira manifestação pública em Oeiras, foram para ruas com cartazes e cantando o hino do CNEC, reivindicando a normalização das aulas à noite, que estavam suspensas por falta de energia elétrica, a partir de então o espirito de liderança começou a florescer na jovem adolescente.

 

Maria José do Nascimento, casou-se muito jovem e mudou para a cidade de Picos, seu casamento lhe rendeu uma família com sete filhos, doze netos e três bisnetos, viúva há mais de 20 anos, ela conta que criou seus filhos sozinha, mas confessa “ Eu não sei se sou relapsa, se priorizei os movimentos, eu sacrifiquei um pouco a minha família, sempre fui uma mãe responsável… mas tenho certeza, se tivesse priorizado a minha família eles tinham avançado mais, não tem nenhum que não tenha o ensino médio, mas não tem nenhum ‘doutor’,” relata a militante que sacrificou a sua vida privada pela luta das mulheres.

 

Sua contribuição para a sociedade picoense começou na catequese a qual passou 12 anos sendo coordenadora, foi Conselheira Tutelar, entrou para o Movimento Comunitário criando as Associações de Moradores, Diretora adjunta do presídio feminino, deixando um projeto de humanização, no movimento feminista passou a lutar pelos direitos das mulheres, e participou da primeira manifestação que ocorreu na Câmara, “Nossa primeira manifestação foi em 1999, para ter direito de fala no Dia Internacional da Mulher, conseguimos 5 minutos… e avançamos um pouco com o projeto de Lei,  que  disponibiliza a Câmara todos os anos para as mulheres”, relembra.

 

Há um ano exerce o cargo de Coordenadora na Coordenadoria de Diretos da Mulher, a função não mudou as suas ações, só lhe acrescentou o poder de oficializar o seu trabalho, explica Mazé, “Pra mim enquanto pessoa não mudou nada… mas empoderou as mulheres, agora eu tenho o poder de decisão, oficialização e solicitação que seja executado”, ela citou ainda a eficácia da Lei Maria da Penha,” Antes da Lei a gente não tinha bem definido os tipo de violências… e uma avalição feita quando a lei completou oito anos …concluímos que ela ainda não tinha dado conta de coibir a violência doméstica, os instrumentos governamentais são sucateados”, informa.

 

maze2E aos 65 anos o fôlego não lhe faltou, iniciou o curso de Direito na Faculdade R.Sá, Nega Mazé era considerada uma aluna especial não só pela idade, mais também pela bagagem de formação social que iria confrontar com a formação acadêmica, sua turma era formada por jovens e ao contestar a Reitora ela foi informada que a decisão foi tomada em conselho, “ Quando fui reclamar sobre a turma, ela disse que assim que passei no vestibular eles fizeram uma reunião, e decidiram que eu ficaria em uma turma de jovens… eu perguntei o porquê… ela falou que se me colocassem em uma turma de idosos eu iria desistir, por que meu corpo é de idoso mas a cabeça é de jovem,” relembra sorrindo.

 

Admiração pela luta de Nega Mazé

Andreia Cardoso, estudante e atendente da cantina no Centro Administrativo, começou uma relação de amizade com a Mazé, assim que começou a trabalhar, como a coordenadora necessitava de uma secretaria, Andreia passou a exercer a função voluntariamente por admiração ao empenho que Nega tem ao auxiliar as mulheres. Tentaram oficializar o cargo o processo foi para Teresina, mais não deu certo. Ela relata com entusiasmo o lado pessoal e profissional da militante, “Eu conheci ela trabalhando aqui… as pessoas chegam procurando por ela e dificilmente ela está, ela resolve as coisas na rua, nas delegacias, vive viajando…sempre fiz por amizade e ela é uma pessoa que está ali para o que precisar, me explica os processos, me ajuda nos trabalhos da universidade”, relata emocionada.

 

Continuação do feminismo em Picos

Maria José foi uma das pioneiras dos direitos das mulheres com a criação da União das Mulheres Picoenses (UMP), que tem por objetivo libertar as mulheres, para adquirir independência, trabalhar, estudar e a ter sua feminidade de volta, as reuniões iniciaram antes de 1983, em ações a favor das mulheres na cidade, “Começamos a fazer intervenções, após o caso da Maria Alice que foi assinada pelo namorado… fizemos panfletagem na cidade sobre violência contra a  mulher”, explica Mazé.

 

 

“1ª Marcha Picoense pelo fim da Cultura do Estrupo”

Nega Mazé uma das organizadoras do evento exemplifica o que é a cultura do estupro, “A cultura é influenciada pelos costumes de como o homem vê a mulher como objeto, que pode usar, que não tem que respeitar, o homem acha que é dono, que manda e a mulher obedece, é a desigualdade de gênero”, resaalta.

 

A marcha aconteceu no dia 16 de agosto, e o principal objetivo é justamente mostrar para a sociedade que existem organizações, para auxiliar a família caso venha acontecer algum estupro na região, que não se intimidem em denunciar, e o estuprador não saia ileso, Isabel da Silva, estudante de biologia da UFPI, ressalta ainda que, “Não vamos nos calar, para que não aconteça o mesmo que aconteceu em Castelo do Piauí, Bom Jesus e no Rio de Janeiro, vamos nos unir e conseguir com que as pessoas que fizeram isso paguem… e as vítimas não fiquem desamparadas”.

 

A estudante incentiva as mulheres para seguir na luta por seus direito, “Na militância tem uma coisa que é assim, quando uma mulher avança o machismo retrocede, então se a gente se unir vai dar tudo certo”.

 

O evento foi organizado pela Nega Mazé, juntamente com o Coletivo GracIones e alguns órgãos do município, como a Coordenadoria do Direito dadas Mulheres, Levante Popular da Juventude, DCE da UPFI, DCE da UESPI, Associação de Profissionais do Sexo, Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social, CRAS e CREAS.

 

Coletivo GracIones

O Coletivo GracIones criado por estudantes universitárias, tem por objetivo combater qualquer tipo de violência contra as mulheres, e lutar pela igualdade de gênero, discutindo o tema além dos muros das universidades, o nome GracIones é em uma homenagem à duas mulheres vítimas de violência de gênero e assassinadas brutalmente, casos que até hoje estão impunes, assim como milhares de no País.

 

A advogada, poetisa e feminista Yana Moura fala da importância da luta feminista na cidade e o avanço nos estudos, “O Coletivo GracIones eu vejo como a consolidação de uma luta dentro da cidade, não se sabe de notícia de um coletivo que trata só das questões feministas, então é um grande avanço, dentro dos estudos feministas, e da luta de igualdade de gênero, eu vejo com grande alegria a união de nos mulheres universitárias.”

 

O posicionamento da advogada vai além das experiências enquanto ativista. “A minha contribuição enquanto advogada é dar apoio às mulheres, ir com elas à delegacia… e demostrar que as mulheres têm direitos”, declara.

 

O coletivo é formado por profissionais de várias áreas, e é visto como uma base de acolhimento, assim descreve a estudante Isabel, “é uma maneira das mulheres terem uma base, sendo um ponto de referência para se caso aconteça alguma violência contra as mulheres, ela tem um núcleo para perguntar, questionar e até mesmo denunciar”, pontua.

 

 

Debate dentro da Universidade sobre Igualdade de Gênero

O âmbito da universidade é um lugar de expansão, evolução de conhecimento e diversidade, a discussão sobre igualdade de gênero tem por objetivo desconstruir e construir novos pensamentos, para que o respeito esteja acima de qualquer diferença de raça, gênero ou direitos de ser.

 

A Professora Mestre e militante Clarisse Carvalho, acredita que toda mudança parte do conhecimento e que a universidade é o ponto inicial, “a discussão de gênero dentro da universidade tem muita importância porque eu entendo que todas as mudanças partem do conhecimento… não necessariamente do conhecimento formal … o que a sociedade reclama e anseia devem reverberar para a academia, ser discutidas aqui, da mesma forma que o que produzimos aqui, deve ir para a sociedade”, explana.

 

Os grupos que mais sofre com essas desigualdades e padrões impostos pela sociedade, são os minoritários, grupos que tem os seus direitos violados, assim comenta a estudante de Direito da UESPI, Virna Rodrigues, “a galera que compõe esses grupos é uma galera que a muito tempo vem sendo oprimida e reprimida, sua história é sufocada, sua cultura é sufocada, e todos os seus direitos desrespeitados”, declara com indignação.

 

Mulher, negra e empoderada

O Coletivo GracIones é a continuação da luta diária de Mazé pelo direito das mulheres, sua história é um exemplo de força que encoraja outras mulheres a seguir o mesmo caminho, nos setores que desenvolveu o seu trabalho deixou marcas de humanização, luta e conquistas. Na militante cumpri sua missão, abdicando da família e dedicando a sua vida à sociedade.

Nega Mazé, emocionada ao dizer que precisa fazer o bem à sociedade. ( Foto: Fabiana Santos)

Nega Mazé, emocionada ao dizer que precisa fazer o bem à sociedade.
( Foto: Fabiana Santos)

A coragem de Nega Mazé é admirável, mulher de fibra que luta como poucos e não teme a quaisquer consequências, consegue fazer das dificuldades uma nova vitória, Mazé, realiza suas ações voluntariamente sem receber nada em troca, apenas gratidão, ela faz por amor ao seu trabalho. E deixa uma frase que nos faz refletir sobre os nossos valores, “Não tenho tempo a perder estudando para a OAB, pra que eu ainda quero dinheiro? Não preciso mais, eu preciso ainda é fazer alguma coisa de bom pra ver essa sociedade mudar, eu estou preocupada com o futuro dela”, conclui emocionada.

 

 

Por: Sandy Swamy

Comentários
Publicidade

Deixe um comentário

Aviso: os comentários são de responsabilidade dos seus autores e não refletem a opinião do Portal Integração. É proibida a inclusão de comentários que violem a lei, a moral e os princípios éticos, ou que violem os direitos de terceiros. O Portal Integração reserva-se o direito de remover, sem aviso prévio, comentários que não estejam em conformidade com os critérios estabelecidos neste aviso.

Veja também...

Portal Integração