Todo santo dia surge um boato envolvendo alimentos e a cura do câncer. Os personagens variam, mas as histórias compartilhadas seguem um roteiro semelhante, com toque maniqueísta. De um lado, destacam-se heróis, caso da graviola, e, na outra ponta, há os ditos vilões, como o açúcar. O cenário também é batido. Quase sempre as descobertas se passam no laboratório da “melhor universidade do mundo”.
Já a divulgação se dá de muitas formas. Pode surgir pela boca da vizinha, pelo grupo do WhatsApp ou pelas redes sociais. Os desfechos, infelizmente, são desastrosos. O fato é que as fake news são perigosas — especialmente quando se trata de saúde. Com o objetivo de combater a disseminação de informações equivocadas, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) lançou uma cartilha.
“De uns anos pra cá, notamos um aumento no número de pacientes que passaram a excluir o carboidrato do cardápio”, exemplifica a nutricionista Gabriela Villaça, coautora da publicação. Tal movimento, observado nos quatro cantos do país, preocupa os especialistas. Afinal, esse tipo de radicalismo desencadeia déficits nutricionais e interfere no sucesso terapêutico.
Em um momento tão delicado da vida, diante de tantos temores, há quem veja certos alimentos como tábua de salvação. “Basta um indício do poder anticâncer, revelado em uma célula no microscópio, para surgir a esperança”, relata Thaís Manfrinato Miola, nutricionista do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, e coorganizadora do 3º Simpósio de Nutrição em Oncologia, que aconteceu há pouco e, entre vários assuntos, discutiu dietas polêmicas.
Mas o caminho da ciência vai muito além das lâminas microscópicas. Antes de bater o martelo sobre a eficácia de qualquer substância, são necessárias diversas etapas de análise, em uma longa jornada. Outra coisa: o câncer é uma doença complexa. Ainda que a alimentação saudável seja parceira, não dá para generalizar as estratégias de combate.
“É preciso levar em conta o tipo de tumor, a terapia adotada e, ainda, a maneira como o organismo reage”, ensina o oncologista Ulysses Ribeiro Júnior, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, o Icesp.
Uma pessoa que passou por uma cirurgia requer certos cuidados; já aquela que faz quimio ou radioterapia precisa de outro tipo de atenção. O cardápio é ajustado de acordo com todos esses detalhes.
“Desde os itens mais apropriados para compor a dieta até a consistência e a temperatura, há minúcias a serem consideradas”, descreve a nutricionista Carolina Rebouças Clara, que também trabalha no Icesp.
Ela ressalta a importância cultural e social da comida. “O paciente não deve fazer as refeições sozinho. É importante estar junto da família”, sugere. E ainda que adaptações sejam necessárias, todos podem apreciar as mesmas receitas.
A regra de ouro é garantir variedade, com espaço para todos os nutrientes. Isso vale para quem está em tratamento, para aqueles que já o concluíram e até para reduzir a probabilidade de a doença aparecer.
Na seara da prevenção, cabe frisar, não faltam evidências científicas robustas sobre o papel de frutas, verduras e legumes. Nesses alimentos dá para apostar sem receio, como reforça um estudo recém-publicado no periódico Plos One. Foram avaliados dados de 1 740 moradores de São Paulo, Goiânia e Vitória.
“Compostos antioxidantes diminuem o risco de tumores de cabeça e pescoço”, revela a epidemiologista Maria Paula Curado, do A.C.Camargo e um dos líderes do trabalho, fazendo menção às substâncias esbanjadas pelos vegetais.
Banana, couve, laranja, cenoura, maçã e brócolis estão, portanto, entre os verdadeiros defensores do corpo. Dentro de um contexto de equilíbrio e junto do plano terapêutico traçado, santos da horta podem, sim, fazer a diferença.
O mesmo não é possível dizer sobre as recomendações infundadas e combatidas na cartilha preparada pelo Inca. Desnudamos esses mitos a seguir:
1. “Carboidrato alimenta o câncer”
Eis o nutriente mais abordado pelo documento do Inca. A fama de mau tem relação com teorias de que o açúcar serve de combustível para o câncer. Ora, se partirmos da lógica de que o carboidrato é a principal fonte energética para todas as células do corpo, essa associação até faz certo sentido. Daí a adotar regimes de exclusão, caso da dieta cetogênica, que privilegia gorduras, só traz prejuízos.
“O organismo vai buscar glicose em outros locais, caso dos músculos”, explica o nutricionista Ronaldo Sousa Oliveira, da Clínica de Oncologia Médica, Clinonco, na capital paulista.
Resultado: a perda de peso se acentua e sintomas como desânimo e dor de cabeça vão dar as caras. Não custa lembrar que nosso cérebro é ávido por glicose.
A sugestão dos profissionais é reduzir doces e farinha refinada, sempre considerando hábitos culturais e dentro do equilíbrio. Abaixo, veja algumas fontes de carboidrato que são bem-vindas:
Cereais: arroz, trigo, aveia e milho são pedidas bacanas. Grãos sem refinamento merecem lugar privilegiado no prato.
Integrais: além de garantirem energia, massas, pães e bolos preparados com a farinha integral oferecem mais fibras, vitaminas e minerais.
Raízes e tubérculos: que tal variar a batata do dia a dia? Incremente o menu com batata-doce, mandioca, inhame…
Frutas: ricas em substâncias protetoras, caso dos antioxidantes, devem surgir em qualquer cardápio. O consumo in natura é o melhor.
2. “A químio não vai funcionar se você comer carboidratos”
Outro mito que merece ser desfeito. A verdade é que banir pães, macarrão, arroz e outras fontes de carboidrato costuma atrapalhar o tratamento. Veja: é justamente o contrário do que ditam as fake news.
“Ao excluir esse nutriente, o paciente tende a ficar mais fraco e, assim, a quimioterapia pode ser suspensa até ele se recuperar”, conta Carolina, do Icesp.
Quando o corpo está debilitado, o tratamento leva mais tempo para trazer resultados. Seja qual for a estratégia de combate adotada, é essencial garantir que o organismo esteja em dia com todos os nutrientes, sem distinção. Dessa forma, os efeitos colaterais das medicações acabam atenuados.
As quantidades de carboidratos, gorduras e proteínas são ajustadas de acordo com condições individuais. Excessos nunca são bem-vindos, em nenhuma circunstância.
No entanto, ao tratar o câncer, é verdade que alguns sintomas abalam a vontade de comer e se hidratar. Veja algumas formas de driblar isso:
Consistência: lançar mão de pratos mais cremosos é crucial para pessoas com tumores na área da cabeça. Capriche em cores e sabores.
Aroma: alguns medicamentos geram aversão a cheiros. Areje a cozinha ou opte por ambientes inodoros na hora das refeições.
Hidratação: distribuir os copos de água ao longo do dia ajuda a proteger os rins e limita a toxicidade dos quimioterápicos.
Temperatura: náuseas e vômitos? Vá de itens gelados. Picolés de frutas cítricas são aliados, desde que não haja lesões na boca.
3. “Proteína de fonte animal faz o tumor crescer”
Mais um nutriente injustiçado pela boataria que rola solta nas redes. Carne vermelha, ovos, queijos e leite têm sido excluídos pelo mesmo motivo que os fornecedores de carboidrato: há rumores de que esses ingredientes figurem entre os pratos prediletos do tumor, isto é, facilitariam a proliferação de células malignas. E outra vez o radicalismo chega para trazer prejuízos, especialmente à massa muscular e ao sistema imune.
A sugestão é intercalar as fontes proteicas no menu, sem se esquecer de incluir os pescados. Quanto maior a variedade, mais sabores e nutrientes no prato.
Sobre as proteínas de origem vegetal, caso das leguminosas, as quantidades costumam ser maiores para suprir as demandas, o que requer o apoio de um nutricionista. Pensando na recuperação de músculos, é essencial que a proteína seja de alto valor biológico, e, nesse caso, carnes, peixes e ovos ganham destaque.
Embutidos são outra história
Apesar de reunirem proteína, as carnes processadas devem ser evitadas, segundo o Inca. Falamos de presunto, salsicha, linguiça, bacon, salame, mortadela e, inclusive, o peito de peru defumado, que para muita gente está acima de suspeitas.
Geralmente, os embutidos contêm conservantes conhecidos como nitritos e nitratos que, ao passar pelo trato digestivo e interagir com o suco gástrico, viram nitrosaminas, potenciais agentes cancerígenos.
4. “Esse alimento ajuda a curar o câncer”
Eis o embuste dos ingredientes milagrosos. Ainda que muitos dos componentes dos fármacos sejam derivados de substâncias vegetais, não dá para extrapolar e dizer que aquele suco ou chá têm as mesmas propriedades. A ciência leva muito tempo para definir as dosagens seguras e eficazes para tratar uma doença. Por isso, nenhum alimento pode ser visto como panaceia.
E jamais se deve confiar em quem sugere a troca da terapia convencional por soluções fáceis demais. “Essas atitudes podem comprometer seriamente a estratégia terapêutica e colocar em risco o paciente”, alerta Andrea Pereira, nutróloga do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Examinamos as plantas e alimentos mais compartilhados por aí:
Noni: apesar do gosto amargo, o fruto asiático se tornou popular no país. Seus poderes de cura são atribuídos aos antioxidantes. Mas não há confirmação científica e já foram relatados efeitos tóxicos ao fígado. Não à toa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe, desde 2007, a comercialização de produtos com o noni no Brasil.
Cogumelo do sol: alçou fama na década de 1990, época em que estrelava comerciais de TV sob a forma de pó ou em cápsulas. O alimento, de nome oficial Agaricus blazei, oferta vitaminas do complexo B, minerais e uma substância conhecida como betaglucana, que atua em prol das defesas. Reúne compostos preciosos, mas está longe, bem longe, de curar o câncer.
Babosa: a espécie suculenta de nome científico Aloe vera contém taninos, substâncias capazes de auxiliar na cicatrização. Daí por que costuma ser aconselhada para atenuar queimaduras nos pacientes de radioterapia. Entretanto, a ingestão é contraindicada, já que pode causar irritação gástrica, entre outros desconfortos. Não caia no conto do vigário.
Chá-verde: até é opção para ajudar a reduzir o risco dos tumores (junto a um estilo de vida equilibrado). Um dos destaques da bebida milenar é a epigalocatequina, de ação antioxidante e anti-inflamatória. Agora, para quem está em tratamento, a história muda. É que alguns compostos interagem com fármacos e podem atrapalhar a quimioterapia.
Óleo de coco orgânico: recentemente começou a circular a notícia de que a versão orgânica do alimento faz o tumor desaparecer. O mesmo atributo teria um suco quente feito com flocos de coco. Só que não há evidências que sustentem tais afirmações. A sugestão é beber a água de coco geladinha, que ajuda a hidratar e não tem contraindicação.
Limão: rico em vitamina C, fibras, potássio e tantas outras substâncias que zelam pela saúde, o limão é parceiro contra os enjoos da quimioterapia, desde que o paciente não apresente lesões na boca. Apesar de o fruto colecionar benefícios, a limonada quente não faz as células malignas sumirem, como se lê na internet e em certos grupos de WhatsApp.
Graviola: ss folhas e sementes concentram uma substância chamada acetogenina, que estaria por trás de uma suposta ação antitumoral. De olho nisso, muita gente toma litros do chá. Um perigo. Além de não acabar com o tumor, em excesso sobrecarrega rins e fígado. Para quem gosta, tudo bem saborear a fruta in natura ou em forma de suco — sem abusos.
Hora da prevenção
Para evitar tumores, há balelas e informações úteis. Veja exemplos
Menu fechado: embora os vegetais reúnam substâncias protetoras, não existe um cardápio específico capaz de afugentar o câncer.
Café não é vilão: especula-se que ele favoreceria alguns tumores. Mas, sem exagero nas xícaras e na temperatura, não há o que temer.
O modo de preparo importa: evite esturricar as carnes. Esse método leva à formação de compostos nocivos à saúde.
Cápsulas não salvam a pátria: os alimentos de verdade dão prazer e têm substâncias que agem em sinergia. Cuidado com o milagre das pílulas.
Não precisa ser tudo orgânico: eles seriam melhores, mas nem sempre acessíveis. Ainda assim, o essencial é comer vegetais.
Fonte: Abril