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“Há um impulso no Brasil por criminalizar”, diz pesquisador sobre fake news

Recalibragem no feed de notícias do Facebook foi a última ação da companhia para minimizar a disseminação de fake news (Foto: reprodução/Facebook)
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Recalibragem no feed de notícias do Facebook foi a última ação da companhia para minimizar a disseminação de fake news (Foto: reprodução/Facebook)

Em 2018, o debate sobre fake news deverá se concentrar, predominantemente, na discussão sobre as iniciativas públicas e privadas que estão surgindo para evitar a irreversível contaminação do processo democrático. Tentativas de regulação têm aparecido mundo afora com a promessa de criminalizar quem publica notícias falsas e, em alguns casos, quem as compartilha (como o Projeto de Lei 6812/2017). A medida mais recente de uma empresa de tecnologia foi a do Facebook, que anunciou na quinta-feira (11) que alteraria seu algoritmo para que publicações de amigos e familiares ganhem mais destaque do que notícias no feed dos usuários. A mudança, segundo o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, motivará as pessoas a interagir com conhecidos e deve reduzir o volume de conteúdo que os usuários curtem e compartilham sem ler.

capa da revista ÉPOCA desta semana analisa o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e sua estratégia política, replicada em outros países, de deslegitimar a imprensa, classificando notícias desfavoráveis a ele como fake news. As reportagens mostram, também, o que França, Alemanha e Estados Unidos estão fazendo para tentar conter a disseminação de notícias falsas nas redes sociais. Sobre o cenário brasileiro, conversamos com Francisco Brito Cruz, diretor do Internet Lab, centro de pesquisa em direito e tecnologia. Seu maior receio é de que o empenho para implementar uma solução rápida por aqui termine em uma cobertura curta: elimina-se parte das notícias falsas e desprotege-se a liberdade de expressão.

ÉPOCA – A mudança de algoritmo do Facebook, que reduz o alcance de notícias, é uma saída inteligente para evitar a disseminação de fake news?
Francisco Brito Cruz –
 A recalibragem do algoritmo do feed de notícias, anunciada na semana passada, é uma iniciativa que a sociedade precisa acompanhar de perto. O caminho adotado é de cautela e redução da exposição dos usuários da rede social a certos conteúdos. Da maneira como foi descrito, a empresa tentará prever e priorizar conteúdos a partir dos quais os usuários vão interagir mais com seus amigos em detrimento à distribuição de postagens públicas, feitas por páginas de empresas e organizações. Reconhecendo que tais mudanças podem diminuir o engajamento e o tempo que as pessoas gastam na plataforma, Mark Zuckerberg afirmou que mais interação com amigos e menos leitura e audiência passiva valorizará o tempo desses usuários.

ÉPOCA – Qual o risco dessa recalibragem?
Cruz – 
Como o Facebook se tornou vital para a circulação de informações, a arquitetura do “feed” impacta no exercício de uma série de direitos. Mudar o feed muda a forma como discutimos qualquer assunto na rede, inclusive política. Existem riscos envolvidos com essa iniciativa, especialmente porque ela não muda o quadro de polarização política que vivemos desde as eleições de 2014. Vamos continuar polarizados. De outro lado, se a empresa se mantivesse inerte, estaria dando as costas a usos antiéticos que os agentes têm aplicado a suas ferramentas, expondo seus usuários. Dessa forma, a única saída inteligente é, na verdade, que acompanhemos e discutamos todos os efeitos desse passo.

ÉPOCA – Como você avalia a replicação da estratégia de Donald Trump, que usa do apelo popular de chamar conteúdos desagradáveis de “fake news” para deslegitimar a imprensa?
Cruz – 
Tentar encurralar organizações de mídia que fazem um trabalho sério, com checagem dos fatos, é uma espécie de relativização da imprensa, dos protocolos e da ética jornalística, como se produzir uma notícia fosse como emitir uma opinião. A ética e os protocolos são parâmetros que servem para cobrir o Trump e, também, seus adversários, por exemplo. Tivemos o caso da Agência Pública e do MBL no ano passado; o MBL fez uma campanha pela extinção do regime semiaberto e a Pública checou os dados, que eram exagerados. Mesmo que uma régua do que seja verdade seja difícil ou impossível de obter, existem diretrizes que você pode utilizar para buscá-la. O Bolsonaro tem todo o direito de criticar uma matéria porque ela deixou de buscar alguma informação, ou criticar o recorte editorial, mas devemos entender que isso é diferente de simplesmente taxar a cobertura de produção de fake news.

ÉPOCA – No momento, há uma busca por culpados, sejam as empresas de tecnologia, impactadas por novas leis, como na Alemanha, seja a imprensa, acusada da produção de fake news. O que está por trás disso?
Cruz –
 Não é um problema simplesmente criminal ou jornalístico, é um problema econômico e político. Político porque tem a ver com a forma como consumimos informação política: nunca da fonte que discordamos. Na hora que lemos e disseminamos informações, compartilhamos as que confirmam nosso lado, e eventualmente elas são mentira. Isso não se resolve com lei, criminalizando, mas quando as pessoas começarem a se ouvir de novo. Já faz quatro anos da última eleição e a polarização só se agravou. Também é econômico porque quem produz informação checada, de qualidade, seja em um jornal grande, pequeno, recém-criado ou tradicional, investe dinheiro em apuração. Não pode publicar qualquer manchete. Então, jornais grandes e pequenos competem pela atenção de um público extremamente polarizado com sites sem compromisso com a informação de qualidade, que não investem dinheiro em uma equipe qualificada, em apuração. Competem com quem dissemina teoria da conspiração e, quando o assunto é o mesmo, o público pode ser o mesmo. Num ambiente polarizado como o que vivemos, a linha que separa o público de teorias da conspiração e o de política fica borrada. Há veículos muito pequenos que, basicamente, publicam manchetes sensacionalistas e boatos na internet e competem em compartilhamentos e curtidas de igual para igual com a Folha de S.Paulo e o Estadão. É um problema econômico de competição por audiência em condições desiguais. E, quando falamos das plataformas digitais, o primeiro ponto é: elas não são as grandes culpadas pela polarização que a gente vive. Dizem, muitas vezes que, “agora que as pessoas têm acesso às redes sociais a gente está polarizado”. Esquecem que passamos pela eleição mais polarizada da nossa história em 2014. Não estamos polarizados somente na internet, mas no dia a dia.

ÉPOCA – No Brasil, a Polícia Federal poderá propor ou alterar a legislação a partir dos estudos do comitê que integra com TSE e MPF.  Há outras iniciativas no Congresso que buscam punir a disseminação de fake news. Especialistas já temem riscos à liberdade de expressão. Por quê?
Cruz –
 Uma solução típica brasileira é criar tipo penal, há um impulso por criminalizar. Todas as vezes que olhamos para uma inovação tecnológica, tipo a internet, as primeiras reações vão no sentido de criminalizar. Desde a época pré-Marco Civil, quando viam algum problema, a solução era criar um crime para resolvê-lo. Só que é sempre mais profundo que isso. As iniciativas daqui revelam um certo descompasso com outros fatores e podem criar um precedente complicado para a Polícia Federal monitorar e controlar discurso. Talvez a PF tenha um papel, sim, na hora de fazer perícias e investigações, sob requerimento do Ministério Público, do Judiciário, em casos específicos. Se não discutirmos os parâmetros e limites de ação do Judiciário ou mesmo da Polícia Federal, com a ideia de que resolverão todos os problemas sozinhos, eventualmente traremos problemas à liberdade de expressão das pessoas. Essas proteções são cruciais para que cidadãos críticos não se sintam constrangidos a criticar e para construirmos um debate no qual estejam presentes inclusive informações e opiniões incômodas. Também não podemos perder de vista é que a mesma preocupação que temos com o setor público precisamos ter com o privado: as políticas que as empresas estabelecem podem influenciar o direito das pessoas. Podem e irão influenciar liberdade de expressão, a privacidade e acesso à informação. É preciso ter uma sociedade civil ativa, pois na hora que você muda e toma uma decisão desse impacto, se o processo não for muito bem calibrado, acaba restringindo a circulação de um discurso legítimo. É importante a participação de diferentes setores, para que nenhum lado fique descoberto.

ÉPOCA – Um projeto de lei busca criminalizar, também, quem compartilha fake news. Muitos brasileiros se informam em grupos de mensagens no WhatsApp e no Facebook, muitas vezes por imagens, muitas vezes sem saber que é fake news. Como a polícia poderia rastrear isso?
Cruz – 
Finja que não existe o WhatsApp. Começa a circular uma notícia de que o Bolsa Família não será pago, que é uma informação que influenciaria no processo eleitoral. Você não consegue controlar a disseminação viral desse boato; é da natureza do boato. O uso de imagens tem a ver com isso, é imediato, estampa uma ideia na mente das pessoas para que ela rode mais fácil. Terão casos que serão informações falsas, outros informações corretas e, dentre esses, os que serão parte de uma estratégia de campanha. O boato funciona assim. É difícil conter. Claro que fica mais dinâmico, com o WhatsApp, mas a natureza é a mesma. Vai culpar o WhatsApp? Como é impraticável descobrir quem inventou o boato do Bolsa Família, é igualmente difícil descobrir quem colocou essa informação na internet. A saída é policiar todos os grupos de WhatsApp que estão compartilhando uma corrente? Não faz sentido.

ÉPOCA – Se a solução não é criar leis, qual a saída?
Cruz – 
Não há solução mágica, não há salvador da pátria, e esse problema não será resolvido rapidamente. Ainda, para saber qual a solução, é importante termos consenso sobre qual o problema que estamos lidando. A questão parece ser muito mais ampla do que “fake news”, com muitas camadas. É a distorção ou a obstrução de acesso à informação política de qualidade. É claro que o Estado tem papel a cumprir: uma série de exigências legais que estão em vigor para proteger a competição eleitoral e, simultaneamente, os direitos dos cidadãos. Você pode tirar da internet um link, uma matéria que cite mentira. Há instrumentos para isso via Justiça Eleitoral, que é muito sensível a prazos, sensível a liminar porque sabe que qualquer minuto a mais que um conteúdo lesivo fica no ar gera impacto gigantesco na corrida eleitoral. Mas existe o problema dos bots por exemplo, que viraram produto de algumas agências de marketing digital para simular uma situação política na internet. Esse tipo de serviço pode ser contratado por qualquer candidato, pela direita ou pela esquerda. Na hora que essa agência fornecer produto para uma campanha eleitoral, a sociedade civil e a Justiça Eleitoral têm de estar muito atentas. Temos de cobrar transparência nas campanhas.

Fonte: Época

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