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Novelas globais têm 90% de brancos, contra 10% de pretos ou pardos, revela pesquisa

Em 2003, Thais Araújo foi a protagonista negra em uma novela da Rede Globo. Foto: TV Globo/Reprodução
Em 2003, Thais Araújo foi a protagonista negra em uma novela da Rede Globo. Foto: TV Globo/Reprodução

 

– Quem você vai ser?
– O capitão do mato
– Mas por quê?
– É o que apanha menos. E todo mundo tem medo dele!
A cena é da vida real e se passa em 1986. Quem a descreve é Reynaldo Maximiano Pereira, um menino negro então com 9 anos. É ele quem se identifica com o capitão do mato, personagem vivido por Tony Tornado em Sinhá Moça, folhetim de Benedito Ruy Barbosa exibido às 18 horas pela Globo naquele ano. Os diálogos se inserem no contexto de uma brincadeira de faz de conta típica da infância. Reunidas numa rua do bairro Renascença, as crianças do grupo escolhiam um herói para encarnar naquele momento de lazer.
“O Super Homem era branco, o Batman era branco, o Homem Aranha, também. Não tive acesso a nenhum herói negro. A referência que primeiro me veio à cabeça foi essa”, Reynaldo Maximiano Pereira, hoje doutor em Comunicação Social pela UFMG e pesquisador de telenovelas.
Representatividade e seus impactos sociais eram, por certo, discussões ignoradas pelo roteiro da novela protagonizada por Lucélia Santos e Marcos Paulo (1951-2012). Ambientada em 1886, dois anos antes da abolição da escravatura no Brasil, Sinhá Moça faz da filha branca de um coronel escravocrata do interior paulista (vivido por Rubens Falco) uma espécie de líder inspiradora de escravos, que os guia rumo à libertação. O elenco negro é 100% restrito aos papéis secundários, com grande concentração nas senzalas. Grande parte sequer recebeu nome.
Longe de causar desconforto, a narrativa que ofereceu um capataz encarregado de caçar e surrar pessoas de sua mesma etnia como melhor projeção identitária a um garoto de 9 anos foi um estrondoso sucesso. Vendida para 113 países, Sinhá Moça é a terceira novela mais exportada da Globo. Em 2006, ganhou remake estrelado por Débora Falabella e Danton Mello. E, mesmo em tempos em que as vozes da negritude soam potentes como raramente antes, a obra de Benedito Ruy Barbosa segue com boa recepção na grade de horários do canal Viva.
“A gente ainda se depara com muito roteiro cujos diálogos vêm assim:  ‘Princesa Carla e empregado negro’. Vem escrito ‘empregado negro’ no script. Ele não tem nome. O ator negro ainda ocupa muito o lugar do serviçal. E isso, para muitos roteiristas de novela e do cinema é natural. Afinal, eles se casaram com pessoas brancas, não convivem com amigos negros, não têm um cunhado negro. Preto não faz parte do escopo do príncipe da vida real. E o pior é que a nova geração, que está fazendo séries, está indo pelo mesmo caminho. Tem série que não tem um preto”, Elisa Lucinda, atriz
Lucinda é uma das adeptas da campanha “Eu poderia estar na novela O Segundo sol”. Iniciada nas redes sociais, a ação se contrapõe ao argumento de que a emissora ficou sem opções para seu elenco uma vez que Taís Araújo e Camila Pitanga decidiram não aceitar o convite para integrá-lo. “Eu poderia estar na novela Segundo sol” lista ao menos 53 atores negros como sugestão para compor casting da novela, entre eles Sheron Menezes, Ailton Graça, Ana Carbati, André Luiz Miranda, Zezeh Barbosa, Cris Viana e Sérgio Menezes.
No WhatsApp, a polêmica também anda quente. Circula pelo aplicativo um vídeo irônico, que compara a escalação de atores majoritariamente brancos para uma trama das 21h ambientada na Bahia com a seleção quase exclusivamente de artistas negros para a encenação de uma história cujo cenário fossem os redutos de imigração alemã no Sul do país.
“Estamos chegando numa hora que eu chamo de ‘hora furuncular’. Espreme-se o carnegão.  Encheu. A gente não aguenta mais. Apesar do racismo estrutural que ainda nos limita muito, Lucélia Santos, hoje, já  não estrearia Sinhá Moça incólume em rede nacional. Também não faria Escrava Isaura (Gilberto Braga, 1976) com a mesma tranquilidade. As políticas de inclusão fizeram surgir uma  periferia vai para a universidade e que já está começando a aparecer na sociedade e criando movimentos coletivos que reivindica espaço, analisa a atriz.
Em um país em que a população negra representa 54% dos habitantes, perfil demográfico traçado pelo último censo do IBGE, a afirmação de que o audiovisual brasileiro reflete a configuração étnica dos povos do Norte europeu parece fazer sentido. Pelo menos é o que apontam pesquisas recentes sobre o tema.
A do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (GEMAA/UERJ), por exemplo, traz estatísticas de bem pouca coloração. Publicado em agosto do ano passado, o estudo analisou 101 telenovelas globais exibidas entre 1994 e 2014 sob os prismas de raça e gênero. Eis os que dizem os números: a média de representação anual de personagens centrais é de 90% de brancos, contra 10% de pretos ou pardos. Foram encontradas, inclusive, oito produções com 100% de personagens centrais brancos, caso das narrativas Império (Aguinaldo Silva, 2015), O beijo do vampiro (Antônio Calmon, 2002) e História de amor (Manoel Carlos, 1995).
Outro dado importante da pesquisa diz respeito aos cruzamentos entre as variáveis gênero e raça. Sim, há predominância de personagens femininas (49,3% em média) nas novelas. Contudo, ao lado de uma super-representação das atrizes brancas, já que a média de intérpretes pretas ou pardas não passa de 4,6%, contra 44,7% de atrizes brancas. O mesmo ocorre com os homens: enquanto os personagens brancos do gênero masculino representam 45,3%, os homens pretos e pardos são apenas 5,4% do total.
“A gente não pode ver a Globo de uma forma única. Isso para mim é evidente. Existe sim, ali, um movimento progressista interno. Desconfio de que a direção mesmo está preocupada com essas questões (relativas à representatividade negra). Inclusive porque sabe que, se não se a emissora não se situar dentro do seu tempo, vai perder o público. Hoje temos um contexto muito diferente do passado. O acesso a outros produtos audiovisuais, sobretudo estrangeiros, antes, dependia da assinatura da TV a cabo, cujo valor só cabia no bolso das classes A, B, talvez C. O streaming, agora, disponibiliza entretenimento, com uma dramaturgia diferente da que vemos nas novelas, a um custo muito acessível. Da geração consume isso  – e tem gostado – fazem parte 300 mil estudantes que entraram nas universidades por meio de cotas e que tem, portanto, uma outra concepção de Brasil. A empresa certamente está atenta a esse fato. Tanto que já me convidou duas vezes para discutir representatividade com seus autores, mesmo convite que fez a outras pessoas com conheço”, diz Joel Zito Araújo, autor do documentário A negação do Brasil, que tem também uma versão em livro, da Editora Senac.
“Por outro lado, os autores e diretores mais consagrado parecem estar com a cabeça no século passado, acomodados numa bolha completamente fora do mundo em que vivemos.  Agora, o João Emanuel Carneiro me surpreende. Eu via uma possibilidade de ele se modernizar, já que sua primeira novela de sucesso é Da cor do pecado (2004), a primeira novela global com uma protagonista negra”, diz Joel Zito Araújo
Tese
Lançado em 2000, o documentário A negação do Brasil percorre a história dos folhetins nacionais no período de 1963 a 1997. Zito defende, na obra, a tese de que a teledramaturgia brasileira se estabelece como um referencial euroamericanizado. O filme foi realizado no contexto do estabelecimento de cotas para afro-brasileiros nas propagandas veiculadas pelos meios de comunicação (projeto de lei que acabou arquivado).
Depoimentos de diversos artistas negros recuperam o histórico racista dos bastidores da televisão, como Milton Gonçalves e Zezé Mota. O relato dessa veterana, aliás, é um dos mais marcantes. Zezé conta que, após o sucesso internacional do filme Chica da Silva (1976), em que era protagonista, foi convidada para participar de um folhetim global cujo papel era o de uma serviçal em uma festa de aniversário. Recusou o papel por considerá-lo subalterno e superficial e recebeu, por isso, uma espécie de ameaça velada de Ziembi%u0144sk, à época, diretor de núcleo da emissora. “Minha querida, se você continuar recusando papeis assim, não vai mais fazer televisão”, teria dito o diretor.
“Para mudar esse contexto racista em sua estrutura, precisamos que haja mais diretores e roteiristas de televisão, cinema, e outras janelas de produção audiovisual. É necessário que a gente abrace esses lugares. Homens e mulheres negras, cis e trans: temos que ir para dentro desses espaços de poder. Não há muita alternativa. Se formos esperar que autores brancos se sensibilizem com a questão da representatividade, vai demorar demais. É na medida em que passamos a assinar o script, ou elaborá-lo, que conseguiremos convencer as empresas de comunicação de que a preocupação em refletir a diversidade brasileira é um dever do ficcionista”, defende Reynaldo Maximiano, especialista na obra de Benedito Ruy Barbosa.
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Aos 34 anos, o publicitário Felipe Silva exibe um Leão no currículo – maior premiação da propaganda concedida pelo Festival da Publicidade de Cannes. Há pouco mais de uma década, o então jovem negro morador da periferia de Niterói relata que era bastante acostumado à invisibilidade nas peças publicitárias de qualquer natureza. Com os bastidores da produção, ele nem se atrevia a sonhar.
A julgar por relatos publicados pelo rapaz nas redes sociais, a escalada até a equipe da Agência África, fundada por Nizan Guanaes, exigiu esforços hercúleos – ainda bem parecidos com os que a negritude precisa fazer hoje para seguir a carreira.
É o que sinaliza um estudo publicado pelo Instituto Etnus em 2015 sobre a presença de negros nas 50 maiores agências de publicidade do país. De acordo com a pesquisa, a cada mil funcionários desses estabelecimentos, apenas 35 são negros. As estatísticas também mostram que apenas 0,74% dos cargos de alta direção são exercidos por afrodescendentes.
As propagandas produzidas no Brasil parecem refletir esses bastidores. Um levantamento realizado em 2017 pelo Instituto Locomotiva com 2020 pessoas negra revela que apenas 6% dos entrevistados se sentem adequadamente representados pelas propagandas de TV. Os dados contrastam com outra investigação conduzida pelo mesmo instituto também no ano passado, cujos cálculos mostram que a comunidade negra brasileira movimenta cerca R$ 1,62 trilhões de reais.
“Eu acho que o mercado inteiro ainda tem muito o que caminhar quando o assunto é representatividade. E o que a gente quer não é só cumprir cota. As vezes, parece que as marcas estão incluindo negros em suas peças com esse objetivo. E não é bem isso. Quando a gente fala de representatividade, quer dizer que queremos protagonismo. Por exemplo: temos muitos comerciais envolvendo famílias, geralmente, famílias brancas. Por que não podemos ter também propagandas com famílias negras? Já tem algumas marcas que entenderam isso, como a Natura. Quando a empresa encomenda um comercial que envolve uma mulher, já especifica logo que quer uma mulher ‘brasileira’,  inclusive porque sabe que o praxe é preencher a peça com mulheres brancas. Já quanto a presença de publicitários negros no mercado, pra mim, é preciso mais que contratar esses profissionais. O apoio tem que ir na base, na formação dessas pessoas”, diz Felipe Silva, redator publicitário na Agência África.
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Fonte:Diariodepernambuco
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