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Papa cumpriu expectativas, mas deixa obra incompleta

Em pouco menos de oito anos de pontificado, Bento XVI protagonizou triunfos e fracassos, acumulou tropeços e façanhas, errou e acertou – como quase todos os outros ocupantes do trono de Pedro. É impossível fazer uma avaliação definitiva de seu papado nos dezessete dias que restam para que ele entregue o anel do pescador e se afaste de vez, numa cerimônia marcada para 28 de fevereiro. Mesmo sem a perspectiva histórica necessária para dimensionar sua importância dentro da extensa lista de pontífices do Vaticano, já é possível dizer que o legado de Bento XVI deixou pelo menos uma pessoa decepcionada: o cardeal Joseph Ratzinger, que entrou no conclave de sucessão de João Paulo II como decano do colégio cardinalício e saiu dele, em 19 de abril de 2005, como novo chefe da Igreja Católica. Como papa, o alemão foi, em linhas gerais, o que a maioria já previa: um líder mais discreto e menos midiático que o antecessor, um defensor ferrenho da doutrina católica, um protetor da liturgia da Igreja. Ratzinger não desejava ser papa. Uma vez escolhido, porém, queria mais do que apenas confirmar as impressões que todos tinham sobre ele. O alemão tinha alguns objetivos muito claros. Ao renunciar, tem de sofrer não apenas com o peso dessa controversa decisão, mas também com a impressão de que não atingiu nenhuma de suas grandes metas – e com a conclusão inescapável de que deixa inacabado seu extenso trabalho a serviço da Igreja.

Bento XVI, de 85 anos, anunciou, nesta segunda-feira, que deixará o pontificado em 28 de fevereiro em razão da idade avançada - AFP

Bento XVI, de 85 anos, anunciou, nesta segunda-feira, que deixará o pontificado em 28 de fevereiro em razão da idade avançada – AFP

 

A própria escolha de seu nome papal, uma referência ao padroeiro da Europa, já indicava uma de suas intenções mais fortes: a de reforçar as estruturas da Igreja no continente onde o catolicismo foi construído. Isso não significava necessariamente arrebanhar novos fiéis e expandir a presença da Igreja nos países europeus, mas sim solidificar sua posição e se reaproximar dos seguidores que andavam se desgarrando. Para Ratzinger, de nada adiantava sair à caça de novos simpatizantes mundo afora se a Igreja perdia espaço e relevância em seu próprio berço. As circunstâncias, no entanto, foram as piores possíveis para que Bento XVI levasse adiante essa reevangelização. Durante quase todo o papado, a revelação de mais escândalos de abusos sexuais cometidos por integrantes da Igreja – na maioria dos casos, em países europeus – foram uma barreira intransponível para seus planos. O número de fiéis nas paróquias europeias não aumentou – e a revolta dos seguidores que restaram, cada vez mais desiludidos por causa da longa lista de escândalos, só cresceu. Em países como Áustria, Holanda, Noruega, Bélgica e a própria Alemanha, a terra do papa, a imagem da Igreja continuou sendo manchada pela revelação dos abusos. A decepção do papa não se resumia aos escândalos em si, mas também ao fato de ele ter sido o principal responsável por conduzir a reação da Igreja aos abusos.

 

Em 2001, João Paulo II entregou à Congregação para a Doutrina da Fé, comandada por Ratzinger, a responsabilidade de lidar com o assunto. O cardeal, que sempre sofreu muito com os relatos e testemunhos que teve de ouvir, estava convicto de que era um imperativo moral agir contra os pedófilos – ainda que a estrutura da Igreja não facilitasse o processo de investigação e punição. O assunto marcou profundamente o futuro papa. “Quanta imundície há na Igreja”, disse, pouco antes do conclave. Ainda como cardeal, ele tomou medidas inequívocas no sentido de combater o problema. De acordo com os críticos, entretanto, faltou firmeza ao alemão, apesar de apelidos como “papa panzer” e “o rottweiler de Deus”. A ausência de reformas específicas e eficazes para impedir que pedófilos entrassem no clero foi uma das principais queixas dos grupos que reúnem as vítimas de abusos. Esperava-se ainda que Bento XVI conduzisse uma reorganização da Cúria Romana, que administra a Igreja. Se João Paulo II não tinha o perfil ideal para reformar a estrutura administrativa do Vaticano, o alemão, metódico e profundo conhecedor dessa máquina, seria perfeito para a tarefa. Poucos lembraram, porém, que Bento XVI é essencialmente um acadêmico – e, portanto, não tem nas relações pessoais e no carisma seus pontos fortes. Fazer política não era com ele. Diante da resistência dos integrantes da Cúria, sempre avessos às tentativas de modernização das engrenagens do Vaticano, o papa foi ficando isolado e impotente. Ele fracassou em duas tentativas práticas de reduzir a burocracia interna através da fusão de diferentes departamentos. A criação de um novo Conselho Pontifício, dedicado à “nova evangelização”, fez com que a máquina administrativa do Vaticano ficasse ainda maior do que já era quando seu pontificado começou.

 

Seu temperamento, tímido e reservado, também fez com que ele tivesse um círculo menor de interlocutores – o que, para alguns críticos, resultou em algumas gafes desnecessárias, principalmente fora do Vaticano. Logo no início do pontificado, em 2006, o papa acabou desencadeando uma polêmica involuntária com os muçulmanos ao citar uma frase crítica a Maomé em palestra em sua antiga universidade, na Alemanha. Para um pontífice que manteve o esforço de João Paulo II para ampliar o diálogo inter-religioso – e ainda defendeu publicamente a criação de um estado palestino -, casos como esse foram uma grande frustração. Outro episódio marcante pelas razões erradas tratou de um assunto muito caro a Bento XVI. Durante anos, ele suportou o desdém de quem não entende a posição da Igreja sobre o uso de métodos contraceptivos. Em 2009, inclusive, foi bombardeado de críticas por um comentário informal sobre a distribuição de preservativos na África – que, segundo ele, mais atrapalhava do que ajudava contra a epidemia de HIV. No ano seguinte, numa entrevista, disse que o uso de camisinha por uma prostituta para proteger a ela e a seu cliente do vírus da aids pode ser justificado, já que sinalizaria a aceitação de uma responsabilidade moral por parte dela. O Vaticano deixou claro que isso não significava que a Igreja tinha mudado de posição e nem que o papa havia liberado o uso dos contraceptivos. Não adiantou: depois de cinco anos de dedicação inquebrantável à defesa pública dos dogmas católicos, um aparente mal entendido fazia a questão da camisinha parecer nebulosa aos olhares dos fiéis. Nesta segunda-feira, com a inesperada renúncia, Bento XVI sofria a última de suas decepções como papa, ao encerrar o pontificado por achar que não é mais capaz de conduzi-lo – ou, conforme acreditam muitos especialistas, para ser capaz de influenciar diretamente em sua sucessão, ainda em vida. Nesse caso, seria a forma encontrada por ele de evitar uma decepção final em seu legado, com uma improvável transição para um pontificado que rompa com as tradições.

 

Fonte: Veja Online CLIQUE AQUI E CONFIRA …

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