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Rumo à “desarenização”? Como as arenas do Brasil estão adotando mudanças vistas na Europa

Em apenas três dias, duas arenas multiuso que constarão como sede na Série A do Brasileirão em 2023 viraram notícia pela decisão de retirada de cadeiras de um dos seus setores.

No dia 29 de março, após reunião entre Governo do Estado da Bahia, Esporte Clube Bahia e Bamor, maior torcida organizada do tricolor, ficou decidido que a Arena Fonte Nova removerá os assentos de plástico do setor Norte Inferior, localizado atrás de um dos gols – onde se localiza a referida torcida.

Em seguida, no dia 31 de março, foi a vez do Athletico Paranaense anunciar que removerá os assentos do setor Buenos Aires (inferior), também fundo de um dos gols, onde se localiza a Fanáticos, maior torcida organizada do rubro-negro. Em comunicado enviado aos associados, o clube indicou ser “um desejo antigo de grande parte dos Sócios e também da torcida organizada”.

Essas duas iniciativas se somam à Arena Corinthians (2014) e ao Estádio Beira-Rio (2019) como arenas da Copa que se abriram para os setores sem cadeiras. Essa medida também já existia desde a criação da Arena do Grêmio (2012) e agora está prevista na Arena do Galo, prestes a ser lançada.

Em todos esses casos, a concessão se dá atrás do fundo de um dos gols, onde historicamente se localiza a torcida organizada (ou barra) mais volumosa do clube. Um padrão já conhecido pelo futebol europeu e que vem se transformando nos últimos tempos.

Entender a arenização

Em 2017, quando publiquei o livro Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno (Multifoco), argumentei que para entender as arenas multiuso que a Copa do Mundo disseminou pelo Brasil, era preciso olhar para além das estruturas metálicas, dos pisos de mármore e das cadeiras de plástico.

A “arenização” é antes de qualquer coisa a imposição de um conceito de “consumo esportivo”. A estrutura flexível capaz de comportar tipos variados de eventos está incrustada de uma ideia profunda de conformação de um público especializado para eventos esportivos, baseada em alguns pressupostos caros ao futebol.

As arenas multiuso, em sua concepção norte-americana original (boa parte delas pagas pelo poder público) serviam para atrair franquias esportivas itinerantes, estruturar o mercado de entretenimento de massas local e vetorizar o desenvolvimento urbano de acordo com o interesse dos poderes vigentes (privados ou estatais).

O futebol europeu passa a assimilar esse conceito apenas partir dos anos 1990 – com o marco da Amsterdam Arena (1996), hoje Johan Cruijjff Arena –, mas é decisivamente impulsionado pela quebra de paradigmas causada pela série de imposições lançadas no futebol inglês após a Tragédia de Hillsborough, em abril de 1989.

Dentre essas imposições estava o conceito de all-seated stadiums (todos sentados), uma medida agressiva e ofensiva ao que se tinha como costume em estádios europeus e sul-americanos, especialmente. Às arenas, a quebra desse tabu cai como uma luva.

Quando falamos do público do futebol, as arenas projetam um padrão de comportamento e poder de consumo muito específico: atomizado, meramente espectador e especificamente capaz de despender recursos financeiros e vários produtos para além do espetáculo esportivo em si.

Uma praça desportiva tomada de cadeiras seria útil para moldar o público do futebol. Se por um lado desestimularia ou sufocaria as tradicionais práticas festivas de torcer – ruidosas, desordenadas, violentas, amendrontadoras –, por outro provocaria a substituição desse público – elitizado, domesticado, “higienizado” e silencioso.

Apesar de parecer uma resposta à violência no futebol, na realidade é a “arenização” que se vale dessa temática para se expandir. Havia (e ainda há) algum tipo de crença de que a instalação em si seria capaz de contribuir com esse problema. Como sabemos, nem no Brasil, nem na Alemanha, tampouco na Inglaterra, esse tipo de modernização estrutural foi útil por si só – senão ao tornar o ingresso caro ao ponto de ser mais fácil adquirí-lo sendo um turista do que sendo um torcedor local.

Cogitando a “desarenização”

Evidente que quando falamos de “desarenização”, não estamos especulando que há algum interesse em voltar ao antigo modelo de estádios da parte de quem dirige nosso clubes e federações – modelo que por si só apresenta uma série de problemas concretos, mesmo aos torcedores menos domesticados.

Quando sugerimos a ideia de “desarenização”, cogitamos que esses “retornos” são, em alguma medida, um atestado do fracasso do projeto inicial de “arenização”. Em uma mão, o fracasso financeiro, quando a própria lógica multiuso teima em não se estabelecer no Brasil. Na outra mão, o fracasso político e sociocultural, porque a tentativa de “mudar a cultura do torcedor” foi, felizmente, uma mera ilusão.

Duas motivações financeiras justificam a aceitação de uma “descadeirização” de um setor festivo: o aumento da capacidade do setor (que também permite cobrar valores maiores em outros setores com cadeiras) e o prejuízo injustificável com assentos que quebram porque estão em lugares onde ninguém quer sentar.

Mas não dá para se resumir às motivações financeiras mais imediatas. Entramos na janela de meses em que todas as arenas da Copa do Mundo estão completando 10 anos de existência; portanto faz sentido que algum tipo de aprendizado finalmente tenha acontecido entre os que decidem as coisas no futebol brasileiro – principalmente quando se dão ao direito de escutar os torcedores.

A cultura torcedora festiva, ruidosa, agitada não vai acabar, porque elabora uma disputa à parte nas arquibancadas. Talvez tenha mesmo uma tendência natural a se aprofundar com as nova gerações, especialmente os mais jovens, sempre extasiados com as façanhas das suas torcidas nas coreografias, baterias e cânticos – e as redes sociais servem como elemento disparador e retroalimentador desse fascínio. Frise-se: com um público cada vez mais feminino e LGBTQIA+.

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